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terça-feira, 25 de janeiro de 2011

Ben 10 e a roleta-russa

Cheia de função, a terça-feira ia bem. Minha vidinha beira o ‘sem-graçinha classe-média’. Passei a manhã inteira em colapso com o preço do material escolar do meu filho de somente três anos, em busca de uma maldita tinta guache especial que não se encontra em lugar nenhum. Voltei pra casa com uma mochila do Ben 10 a contra-gosto quase morrendo do bofe, comprada pela minha mãe, que insistia que o menino não ia para escola com a bolsa do ano passado. Voltei correndo para casa e toda aquela estória. Feijão novo e frango cheiroso, banho em mim, banho em menino. Rua, engarrafamento. Deixei o capiroto – apelido carinhoso para o meu filho - na colônia de férias e seguia cantando no meu carro, que está com as caixas de som estouradas, em direção ao trabalho. Enquanto minhas caramilholas encarnavam Céu e sua Malemolência, o carro da frente freou bruscamente. Estávamos na Avenida João de Barros, quase embaixo do viaduto da Agamenon Magalhães. Era um celta preto de sei lá que ano, o qual eu buzinando, quase enfio as fuças do meu lindo Palio embaixo de suas saias.

Eu – temperamentalzinha e mimadinha que sou -já estava de janela aberta para xingar o ser humano do volante à frente, quando, só aí, percebi o que acontecia. Era um menino, não tinha 13 anos. Magro, com aquela cara de adolescente meio fase gato-espremido. Pele morena, limpo, cabelos encaracolados, sobrancelhas grossas. Não sei como consegui decorar tão bem seu rosto. Tudo aconteceu em somente um segundo. Mas decorei. Tinha os olhos da revolta, da mais pura revolta. Não passou desespero, não demonstrava tristeza, não transmitia transtorno. Era só revolta. Assim como se jogou na frente do carro da frente, jogou-se também na frente do meu carro. Depois de um quase-acidente, aqueles olhos esbugalhados pularam na minha frente. Fazia gestos com as mãos gritando alto ‘Venha, pode vir. Venha, venha logo!’. Uma luz me fez desviar. Puro instinto. Consegui não machucar o garoto. E até onde minha vista alcançou pelo retrovisor, os carros que vinham também não acertaram ele, apesar do seu esforço profundo, que pulava de carro em carro, enquanto todos eles buzinavam, desviavam e o xingavam de louco, drogado e outros adjetivos carinhosos. Pra não cometer mais bobagens no trânsito, tentei me recompor. Sacudi a cabeça e voltei a dirigir. A experiência foi dolorosa, mas eu precisava chegar inteira no serviço. Enquanto isso, refletia inevitavelmente. Mil filminhos na minha cabeça. Criei situações, inventei verdades.

Meu filho tem três anos. Nasceu com os olhos pra lua. Loirinho, esperto, cheio de saúde. Estuda em ótima escola, faz natação, colônia de férias e até terapia ocupacional. Minha vida financeira é regrada, coisas de jornalista. Mas ele tem a sorte de uma avó apaixonada e vizinha que faz todos os gostos – incluindo a tal mochila do Ben 10 lá de cima do texto. Logo, logo terá 13 anos. Eu, coruja conhecida, faço mil planos ousados. Quero que ele seja médico, que salve vidas. Ou que ganhe medalhas nos Jogos Olímpicos de miloitocentoseteletransporte. Não sei ainda o que ele vai querer ser. Mas sei que posso fazer das tripas coração para dar a ele condições de ser o que ele quiser e for feliz sendo.

E exatamente o que o difere daquele garoto dos olhos de revolta que brincava de roleta-russa com os carros da avenida? Passei cinco minutos olhando para esta pergunta e digo: Não há resposta. Aquele garoto é só um garoto. Assim como será o meu quando chegar aos seus 13 anos. Ele deve ser engraçado, comunicativo. Deve adorar jogar bola e talvez, seja ótimo em história na escola. Pode ser que ele tenha um grande potencial como nadador. Ou de repente tenha dons pra arte. Quem sabe se não é um grande saxofonista? Ou um exímio matemático?

No entanto, é bem provável, não será nada disso. Não sei se algum carro chegou a machucá-lo. Não sei o que o levou a fazer aquilo. Se não desta vez, em algum momento ele pode conseguir o que deseja de outra forma, com outras tentativas. Talvez não queira continuar. E é possível que o motivo seja porque, em algum momento, ele quis ser todas estas coisas, mas jamais encontrou ou encontrará um caminho. Não há resposta. Nada difere aquele do meu garoto. Ambos são garotos que assistem e adoram o Ben 10. Com tantos sonhos e vontades. Com tantos quereres. Mas só um, com oportunidades.

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