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terça-feira, 13 de dezembro de 2011

A magia de querer mudar o mundo


Acredite você ou não em teoria da evolução, nos macaquinhos ou na criação divina, seja lá de onde diabos a gente venha, quando surgimos em forma de matéria no universo, a partir de então, a gente percebe que precisa escolher. Desde sempre, desde que me entendo por gente, a escolha mais importante da minha vida foi a de ser militante. Ser militante é talvez a condição mais difícil de escolha para um ser humano. Quem escolhe ser militante precisa refazer a mesma escolha todos os dias. E se virar do avesso, fazer das tripas coração para não fraquejar no meio do caminho.
Eu não sei como foi para os outros. Já ouvi falar de quem fez a escolha tarde, possivelmente porque se convenceu tarde. A minha foi bem cedo. Fazia um sol de rachar, eu devia ter uns 6 ou 7 anos e brincava na beira da praia com outras crianças quase em frente a nossa casa de veraneio. Éramos muitas, entre elas, filhos de veranistas – como eu - , filhos de moradores, de pescadores e pipoqueiros, todas crianças, todas filhas do mundo brincando na mesma areia, partilhando os brinquedos, a alegria, a inocência.
Nesse dia uma pessoa me disse que com certas crianças, era pra eu brincar, mas não deveria me misturar, pois eu era diferente delas, porque eu era especial. Quem me disse isso se referiu ao fato de eu ser filha de um médico e uma dentista e de fulaninha e cicraninho serem do pescador. Foi o primeiro dia que eu senti nojo de algo que não era de comer.
De fato, este episódio também me fez perceber que eu era mesmo diferente, mas era diferente justamente daquela pessoa que, de alguma forma, me alertou que no mundo existia algo que eu ainda não tinha compreendido, mas já detestava com todas as minhas forças: O preconceito e as injustiças. E naquele dia eu descobri que tinha um lado. E seria nele que eu permaneceria. Foi o dia da minha escolha.
A cena nunca desapareceu da minha memória. Lembro da cor do meu biquíni e dos lábios da pessoa se movendo para me transmitir esta mensagem. E sempre que meus neurotransmissores cerebrais retornam àquele dia, o embrulho que sinto no estômago é o mesmo, como uma resposta automática do meu organismo àquele absurdo medonho. E este mesmo embrulho me acompanhou em milhares de outras situações. Como quando na sexta-série uma menina xingou uma amiga negra no intervalo da aula na escola cristã em que sempre estudei, ou quando eu via as crianças dormindo na rua e pedindo comida no sinal, e eu me perguntava se fazia sentido, ou porque eu tinha sido escolhida para ter.
O tempo me fez descobrir que este maldito embrulho é quem me faz não vacilar, mesmo derrotada. E uma mistura disso com meu ascendente em capricórnio e minha orixá protetora e guerreira, uma bando de livros de Marx ou sobre antropologia e sociologia – que me explicaram que eu ter e o outro não nada tinha a ver com o estado karmico de cada um - foram os responsáveis para que todos os dias da minha vida eu continuasse convencida de que ‘ser militante’ é a minha condição nata, e que é nela que eu me completo, e que é essa indignação com a fome e com a falta de amor do mundo que rege todos os meus passos.
Na infância, ser militante é quase energético. Você se junta com as minorias da escola e despreza, briga e sofre bullying dos opressores populares. Se for feito eu, passa a semana sendo mandada pra psicóloga e pra secretaria porque saiu no tapa com a menina loirinha estúpida e preconceituosa pra defender o gordinho da classe
Só na adolescência é que nasce a consciência social, o entendimento e a compreensão. É por isso que a juventude tem um estado nato de rebeldia, àqueles que são rebeldes, logicamente. Porque na hora que você finalmente compreende que todas àquelas suas indagações de fato continuam sem sentido algum mesmo com sua infância tendo passado, aí você quer porque quer dar um jeito de resolver o problema. E a resolução destes problemas só vem com luta de classes. E você associa tudo que estudou nas aulas de história da Tia Ilca, o passado ao presente. Aí você lê Marx e é caixão e vela preta.
Então você se envolve, se entrega, se revolta, chora litros. E se emociona. Muito. E sempre. Com a história, com a solidariedade, com o colega que também luta. E isso vai regendo todas as suas escolhas de vida adiante. Com quem você se envolve, quem são os seus amigos, quem você ama, a profissão que você vai escolher e mais, a forma e a postura que você terá com essa profissão, a tua ética, teus princípios, a forma com que você fala com as pessoas, a maneira com que você as trata, todos os seus movimentos são regidos com o objetivo de construir um mundo melhor, de transformar o planeta e de levar mais amor a ele.
Ser militante é sim uma escolha difícil. É abandonar a condição de ‘ser passivo’ e assumir posições, descer do muro. É ser a excluída na infância, a estranha na adolescência e a louca que fala sobre a importância da soberania internacional e autonomia dos povos diante do imperialismo na vida adulta. É ser a chata que defende o estado da Palestina, o desenvolvimento nacional e manda não jogar papel na rua – e, por isso, fica sem namorado. É abrir o bocão pela igualdade de gênero e condição sexual e ficar um final de semana inteiro em um seminário para discutir como fazer para garantir para todos o direito à comunicação através da regulamentação dos meios. E ficar ensinando compulsivamente ao filho que todos os seres humanos são iguais e tem os mesmos direitos, porém diferentes, cada um com sua peculiaridade, mas lindos, todos lindos e especiais.
Ser militante é escolher muitas vezes ir pra uma passeata no lugar de estar na praia com os amigos. É confrontar sem medo. É ser chamada de parcial pelos colegas e não ser chamada para muitos trabalhos por conta das suas posições claras e expostas, mas é ter compromisso com a verdade e responsabilidade até na hora de escrever uma matéria sobre o crescimento dos campeonatos de gamão e dominó no Estado onde mora. Ser militante é ter certeza que aquela reunião do sábado de manhã finalmente vai mudar o mundo a garantir os Direitos Humanos básicos à toda população e também a Dona Maria, lá do Alto do Mandú, que não é em nada pior do que você ou que sua mãe pra ter que ficar três meses morrendo de dor na fila de espera de um hospital esperando para ser atendida.
Mas ufa, quanta coisa ao mesmo tempo. É muita informação. E aí você pergunta: Mas final de contas, minha filha, finalmente, quando é que você vai mudar esse bendito desse mundo, que desde de pequena que tu tá nessa pendenga sem fim? A resposta é: Não faço a vaga idéia. Mas a maior de todas as magias de ser militante é justamente não se importar em mudar o mundo para que o outro, no futuro, usufrua e desfrute desse mundo lindo e mudado, que um dia há de chegar. Mas se há.

Invençãozinha

Sei que alguém já disse isso, mas eu quero dizer também

A gente inventa o amor só para se sentir bem.

sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

Um salve

Eu sou guerreira Iansã

Filha de Oiá, protegida por xangó

Regida por vênus

Mas nascida das águas por um milagre de yamanjá

Tua mandinga pra mim é revertida

Na mais pura alegria pra reger a minha vida

Salve, salve aos que vem aqui trazer amor.

quarta-feira, 9 de novembro de 2011

Com Joelle - Madaleine Fragmentos

Fazia sol naquela manhã, mas havia algumas nuvens no céu. A boa brisa que atravessava e balançava aquelas cortinas brancas de fino tecido refrescava seu rosto alvo enquanto espreguiçava na cama tomando forças para acordar. Madaleine tinha a pele fina, destas que marcam com qualquer toque. Nasceu em 1970, em Paris, data significativa para os que sempre precisaram de uma boa desculpa para ficar nu. Cresceu em um trailer itinerante vendo seus pais sem roupa. À beira de seus 32 anos, não conseguiu se acostumar aos panos, ainda que leves, e quase nunca utilizava de vestimentas dentro de casa. Morava só em um pequeno apartamento de um vão situado bem próximo a Place de La Concorde, uma transversal da Champs-Élysées.

Era sábado, ela levantara contente por não precisar sair às pressas para ir ao café. Todo dia precisara servir e servir com mil sorrisos que nem sempre gostaria de distribuir. Enquanto passava um expresso e apreciava aquele odor do pó diluindo em água quente, devorava com os dedos um pote de chocolate com avelã, primeiro um, depois o outro, e lambia um a um.

Ele se chamava Joelle. Era alto, com uma barba mal feita, magro e com os dentes um pouco mal tratados. Estavam juntos há três anos. Todo o dia à noite, ao sair do trabalho, passara no apartamento de Madaleine. Era assim desde o início. Às 19h ele entrava com sua própria chave. Apressava-se sempre para possuí-la, sem muita atenção aos desejos dela.

A princípio, ela fingia gostar. Mas há pouco, havera decidido não mais esconder. Ele continuara a ignorar. Em seguida, bebia uma garrafa de cerveja em um só gole e ia embora, deixando os rastros do seu sapato na sala enquanto ela, sozinha, terminara o serviço mal acabado

sexta-feira, 4 de novembro de 2011

Lágrimas e Uísque

Eu queria hoje inundar o mundo inteiro

E de tanto pranto, afundar o chão

Eu queria hoje deixar toda maré

descer do meu olho

E de tanta água, afogar até o rio

Eu queria hoje escrever um poema

Um poema que falasse de dor

Mas to tão inerte que nem consigo

Eu queria era chorar, mas chorar

E chorar muito

Chorar até cair a bola do olho

Queria dizer que to cansada

Que estou sem saco, farta

E que tem um sufoco, um sufoco enorme

Bem no meio do meu pescoço

Eu queria ficar prostada, acabada, derrotada

Queria me deixar vencer, nocauteada, morrida

Eu queria ser fraca, me entupir de psicotrópicos

Usar drogas e virar alcoólatra

Tudo pra justificar minha dor

Queria entrar pra igreja, me agarrar em deus, apostar na fé

Queria ir no terreiro fazer um trabalho pra desfazer o trabalho

Ou, talvez, no centro pra uma irmã me tirar o encosto

Queria ter certeza que vai dar tudo certo

Ou até mesmo que vai dar tudo errado

Mas não sou otimista, nem pessimista

Vivo essa merda de vida real somente respirando

Acordando todo dia pra fazer tudo de novo

E fudendo a alma por um prato de comida por dia

E cinco doses de uísque no final de semana

terça-feira, 11 de outubro de 2011

O diabo do ser humano

Ah, mas que insuportável e deliciosa essa confusa condição humana. Perdida na tortuosa paradoxal tentativa de racionalizar a busca da perfeição, mas também permitir-se ser errônea nem que fosse somente dez centavos, a mística do que danado fazer diante daquela maldita situação transtorna o cérebro - sacolejando os malditos pensamentos que teimosamente não param quietos num canto- , e, por outro lado, dão um bando de tabefes na cara do coração (coração?seria mesmo?), que é teimoso e arredio, parece uma mula, e só aceita mesmo fazer as coisas do jeito dele.

E então, variando – de variação mesmo – você entra no jogo, se envolve no joguete, berra, grita, solta fogos, vê estrelas. Varia, de avariação. Aprecia a lua, ou até mesmo acha uma boa merda. E trepa, enlouquece. Ama. Depois racionaliza, esquece. E na máxima de ser humano, o tal do ser humano, ah, esse tá fadado mesmo é a ser de carne e osso (e sangue). Sente embrulho no estômago, nó nas tripas, engasgo no pescoço. E vai traçando caminho, andando no mundo conhecendo as coisas, por vezes de olhos abertos e outras não. Sobrevivendo na guerra, aparando essa arenga sem fim entre o subjetivo, a verdade e o esforço.

E olhe, meu senhor, eu vou lhe dizer um negócio. Não tem nesse mundo nietzsche, e cá entre nós, nem mesmo Regina Navarro, e quem dirá o cabra mais macho – ou a cabrita mais braba – que dê conta de ignorar aquela coisinha boa de benza mãe que dá no diabo do ser humano, todo errado que é, quando o que se quer mesmo é simplesmente ficar do lado de alguém.

quarta-feira, 21 de setembro de 2011

Madaleine - Parte I

À direita, ela não escondia mais vontades. Enquanto ele matava a sede, debruçou-se com a mão esquerda nas próprias partes. Devagar, dedicou-se a si mesma com entusiasmo de quem não estava sendo totalmente ignorada. O olho dela invertia. A coluna transpirava de desejo. Era assim sempre, a cada intervalo enquanto não estava dedicando-se a encarnar a Pagu, ou até mesmo atualizando novas leituras à Madame Bovary. Naquela hora, especialmente naquela hora, a boca insistira em salivar, e exalava um cheiro doce.

Ele levantou, beijou-a na cabeça com um carinho fraterno que ela dispensava. Virou as costas, sujou o carpete com o sapato e bateu a porta. Na cama, nem os olhos abriu. Determinada em suas próprias vontades, mostrava os seios à todos que ali não estavam, e devorava com as mãos um público inteiro que jamais presenciou o espetáculo, mas que ela escutava os aplausos sempre antes de levantar.

A intimidade com a cama a fez adormecer os olhos, enquanto o corpo incansavelmente funcionava. Despertou em poças. A pele clara tinha placas vermelhas. Sentiu falta dele à cama, mas somente por um instante. Na sala, as marcas do sapato no carpete. Era rotina. Ela limpara, e elas voltariam. Ainda úmida, despida, satisfeita, abriu as cortinas. Amanhecia e a cidade luz já mostrava daquela janela um pedacinho do Obelisco de Luxor quando a campanhia tocou.

Madelaine não esboçou reação, não havia surpresa. Ansiosa, esperava. Caminhou à porta. Completamente nua, girou a maçaneta e a encontrou. Valentine entrou em um silêncio, mas na face, um sorriso gritava bem no canto da boca de lábios pálidos e magros. Elas tinham os mesmos olhos. O mesmo cheiro, o mesmo gosto de carne crua. E Empoçaram-se naquela fome, numa batalha de peles alvas e línguas ácidas que não terminara antes de um novo amanhecer em Paris.

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