Acredite você ou não em teoria da
evolução, nos macaquinhos ou na criação divina, seja lá de onde diabos a gente
venha, quando surgimos em forma de matéria no universo, a partir de então, a
gente percebe que precisa escolher. Desde sempre, desde que me entendo por
gente, a escolha mais importante da minha vida foi a de ser militante. Ser
militante é talvez a condição mais difícil de escolha para um ser humano. Quem
escolhe ser militante precisa refazer a mesma escolha todos os dias. E se virar
do avesso, fazer das tripas coração para não fraquejar no meio do caminho.
Eu não sei como foi para os
outros. Já ouvi falar de quem fez a escolha tarde, possivelmente porque se
convenceu tarde. A minha foi bem cedo. Fazia um sol de rachar, eu devia ter uns
6 ou 7 anos e brincava na beira da praia com outras crianças quase em frente a
nossa casa de veraneio. Éramos muitas, entre elas, filhos de veranistas – como
eu - , filhos de moradores, de pescadores e pipoqueiros, todas crianças, todas
filhas do mundo brincando na mesma areia, partilhando os brinquedos, a alegria,
a inocência.
Nesse dia uma pessoa me disse que
com certas crianças, era pra eu brincar, mas não deveria me misturar, pois eu
era diferente delas, porque eu era especial. Quem me disse isso se referiu ao
fato de eu ser filha de um médico e uma dentista e de fulaninha e cicraninho
serem do pescador. Foi o primeiro dia que eu senti nojo de algo que não era de
comer.
De fato, este episódio também me
fez perceber que eu era mesmo diferente, mas era diferente justamente daquela
pessoa que, de alguma forma, me alertou que no mundo existia algo que eu ainda
não tinha compreendido, mas já detestava com todas as minhas forças: O
preconceito e as injustiças. E naquele dia eu descobri que tinha um lado. E
seria nele que eu permaneceria. Foi o dia da minha escolha.
A cena nunca desapareceu da minha
memória. Lembro da cor do meu biquíni e dos lábios da pessoa se movendo para me
transmitir esta mensagem. E sempre que meus neurotransmissores cerebrais
retornam àquele dia, o embrulho que sinto no estômago é o mesmo, como uma
resposta automática do meu organismo àquele absurdo medonho. E este mesmo
embrulho me acompanhou em milhares de outras situações. Como quando na sexta-série
uma menina xingou uma amiga negra no intervalo da aula na escola cristã em que
sempre estudei, ou quando eu via as crianças dormindo na rua e pedindo comida
no sinal, e eu me perguntava se fazia sentido, ou porque eu tinha sido
escolhida para ter.
O tempo me fez descobrir que este
maldito embrulho é quem me faz não vacilar, mesmo derrotada. E uma mistura
disso com meu ascendente em capricórnio e minha orixá protetora e guerreira,
uma bando de livros de Marx ou sobre antropologia e sociologia – que me explicaram
que eu ter e o outro não nada tinha a ver com o estado karmico de cada um -
foram os responsáveis para que todos os dias da minha vida eu continuasse
convencida de que ‘ser militante’ é a minha condição nata, e que é nela que eu
me completo, e que é essa indignação com a fome e com a falta de amor do mundo
que rege todos os meus passos.
Na infância, ser militante é
quase energético. Você se junta com as minorias da escola e despreza, briga e
sofre bullying dos opressores populares. Se for feito eu, passa a semana sendo
mandada pra psicóloga e pra secretaria porque saiu no tapa com a menina
loirinha estúpida e preconceituosa pra defender o gordinho da classe
Só na adolescência é que nasce a
consciência social, o entendimento e a compreensão. É por isso que a juventude
tem um estado nato de rebeldia, àqueles que são rebeldes, logicamente. Porque
na hora que você finalmente compreende que todas àquelas suas indagações de
fato continuam sem sentido algum mesmo com sua infância tendo passado, aí você quer
porque quer dar um jeito de resolver o problema. E a resolução destes problemas
só vem com luta de classes. E você associa tudo que estudou nas aulas de
história da Tia Ilca, o passado ao presente. Aí você lê Marx e é caixão e vela
preta.
Então você se envolve, se
entrega, se revolta, chora litros. E se emociona. Muito. E sempre. Com a
história, com a solidariedade, com o colega que também luta. E isso vai regendo
todas as suas escolhas de vida adiante. Com quem você se envolve, quem são os
seus amigos, quem você ama, a profissão que você vai escolher e mais, a forma e
a postura que você terá com essa profissão, a tua ética, teus princípios, a
forma com que você fala com as pessoas, a maneira com que você as trata, todos
os seus movimentos são regidos com o objetivo de construir um mundo melhor, de
transformar o planeta e de levar mais amor a ele.
Ser militante é sim uma escolha
difícil. É abandonar a condição de ‘ser passivo’ e assumir posições, descer do
muro. É ser a excluída na infância, a estranha na adolescência e a louca que
fala sobre a importância da soberania internacional e autonomia dos povos
diante do imperialismo na vida adulta. É ser a chata que defende o estado da
Palestina, o desenvolvimento nacional e manda não jogar papel na rua – e, por
isso, fica sem namorado. É abrir o bocão pela igualdade de gênero e condição
sexual e ficar um final de semana inteiro em um seminário para discutir como
fazer para garantir para todos o direito à comunicação através da
regulamentação dos meios. E ficar ensinando compulsivamente ao filho que todos
os seres humanos são iguais e tem os mesmos direitos, porém diferentes, cada um
com sua peculiaridade, mas lindos, todos lindos e especiais.
Ser militante é escolher muitas
vezes ir pra uma passeata no lugar de estar na praia com os amigos. É
confrontar sem medo. É ser chamada de parcial pelos colegas e não ser chamada
para muitos trabalhos por conta das suas posições claras e expostas, mas é ter
compromisso com a verdade e responsabilidade até na hora de escrever uma
matéria sobre o crescimento dos campeonatos de gamão e dominó no Estado onde
mora. Ser militante é ter certeza que aquela reunião do sábado de manhã
finalmente vai mudar o mundo a garantir os Direitos Humanos básicos à toda
população e também a Dona Maria, lá do Alto do Mandú, que não é em nada pior do
que você ou que sua mãe pra ter que ficar três meses morrendo de dor na fila de
espera de um hospital esperando para ser atendida.
Mas ufa, quanta coisa ao mesmo
tempo. É muita informação. E aí você pergunta: Mas final de contas, minha
filha, finalmente, quando é que você vai mudar esse bendito desse mundo, que
desde de pequena que tu tá nessa pendenga sem fim? A resposta é: Não faço a
vaga idéia. Mas a maior de todas as magias de ser militante é justamente não se
importar em mudar o mundo para que o outro, no futuro, usufrua e desfrute desse
mundo lindo e mudado, que um dia há de chegar. Mas se há.
12 comentários:
Uma pessoa que se diz jornalista e diz que leu Marx deveria voltar e reescrever esse texto, porque tá medonho. Cheio de erros de doer as vistas.
Você, anônimo, se refere a quais erros? Caso sejam as ideias, tens todo o direito de discordar. Mas, se forem erros de língua portuguesa, por exemplo, eu digo que, apenas em duas frases escritas por você, há mais erros que em todo o texto dela.
Hahahaha. Oxi, gentes. Sem arengas. Todos tem direito a opinar e é impossível agradar a todos. Mas agradeceria se anônimo 1 me indicasse os erros de doer as vistas para que eu possa corrigi-los :) Abraços.
Eita. E obrigada também ao defensor anônimo :D O anônimo 2 :P
Manuela, meu nome é Marcelo Déda, sou sergipano, 50 anos, militante desde sempre, não importando a tarefa institucional que esteja cumprindo.Escrevo só para te dizer uma coisa: seu texto me emocionou. Obrigado!
Parabéns Manuella pelo ótimo texto e pelo lindo ser humano que você nos faz acreditar que é. Valeu! Gláucio Campos.
Oi Manuella sou sergipana também como o meu Governador Marcelo Déda e foi através do face dele que cheguei ao seu texto e o achei maravilhoso, parabéns!
Obrigada pelo carinho e elogio de todos :)
Manu, lindo texto, te elogio por aqui também, de novo. Mais uma vez, porque nunca é demais dizer que é muito bom ler um texto assim e saber que, apesar de todos os problemas que nos cercam em cada esquina desse mundo louco, ainda temos vontade de fazer diferente, Digo isso mesmo não sendo militante. É uma delícia saber que, a cada ideia que trocamos, somos cúmplices de uma pontinha de mudança nessa loucura. Nem que seja para ter certeza que há pessoas como vc, que acreditam no outro, que têm como ideal de vida cumprir com a verdade. Um cheiro do tamanho desse coração!
Nossa descobri esse texto por um acaso em algum lugar na net... virei teu fã! Somos muito parecidos! Beijocas
Vou voltar aqui sempre
Oi Manu. Tem uns dias que guardei seu texto pra ler pois queria fazer com bem cuidado, sem correria. Vi alguns elogios logo quando você postou e fiquei curioso. Mas precisava sentir vontade ou necessidade de ler. Eis que finalmente me deparo com o texto à altura da Manu que eu conheço: sensível, bela e visceral. Salvou minha noite de insônia e renovou minha militância (Danilo Moreira)
É gostoso ler e reler esse texto. E, além de te ver, ver também um pouquinho de cada militante que cruzou nosso caminho ao longo dessa vida. Emociona e acalenta. Um xêro pra tu galega! Aninha Santos
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